Éric Toussaint não está
optimista, mas tem uma visão diferente da actual crise e do que fazer para sair
dela.
O politólogo e professor universitário belga esteve recentemente em Lisboa para ajudar a lançar a Iniciativa por uma Auditoria Cidadã à Dívida Pública. Experiência não lhe falta.
É presidente do Comité para Anulação da Dívida do
Terceiro Mundo e fez parte da equipa que realizou, entre 2007 e 2008, a
auditoria sobre a origem e destino da dívida pública do Equador, ao serviço do
novo Governo de esquerda do país, num processo que levou ao julgamento de
vários responsáveis políticos e à decisão unilateral de não pagar parte da
dívida equatoriana. Acredita que o mesmo pode acontecer na Europa. Mas isso
implica romper com as exigências da troika.
Depois das decisões que saíram da última cimeira europeia, acha que a crise da dívida está próxima do fim?
Esta é uma crise que vai durar 10 ou 15 anos, porque o
problema fundamental não é a dívida pública, mas sim os bancos europeus. E não
estou a falar dos pequenos bancos portugueses ou gregos. O problema é que os
grandes bancos – Deutsche Bank, BNP Paribas, Credit Agricole, Société Generale,
Commerzbank, Intesa Sanpaolo, Santander, BBVA – estão à beira do precipício.
Isso é muito pouco visível no discurso oficial. Só se fala da crise soberana,
quando o problema é a crise privada dos bancos.
Está a referir-se à exposição dos bancos à dívida pública de alguns países do euro?
Está a referir-se à exposição dos bancos à dívida pública de alguns países do euro?
Não, não é a exposição à dívida soberana, mas sim a
derivados tóxicos do subprime [crédito de alto risco]. Está a ocultar-se que
todo o conjunto de derivados adquiridos entre 2004 e 2008 continuam nas contas
dos bancos, porque são contratos a 5, 10 ou 15 anos. Somente quando o contrato
chegar ao fim é que se vai descobrir a amplitude da toxicidade e das perdas,
visto que as contas actuais dos bancos mostram esses derivados avaliados, não
ao valor de mercado, mas ao valor facial, do contrato. Foram, aliás, esses
problemas com os activos tóxicos que geraram os da dívida soberana. Em 2008,
quando os bancos deixaram de conceder crédito entre si, o investimento mais
seguro era comprar títulos da dívida soberana e os mais rentáveis eram da
Grécia, Portugal, Irlanda, Espanha e Itália. Então, os bancos compraram muitos
títulos para substituir os derivados que tinham. Agora, têm os dois, porque não
conseguiram desfazer-se dos primeiros. Mas é totalmente falso dizer que o
problema actual é a dívida soberana. É a soma dos dois.
Há, contudo, uma crise da dívida, que obrigou a
Grécia, Portugal e a Irlanda a pedir ajuda. Como é que avalia a resposta que foi
dada para estes países com os planos da troika?
Esses planos vão piorar a situação desses países, isso
é absolutamente claro. A redução maciça das despesas públicas e do poder de
compra da maioria da população vai diminuir a procura e as receitas fiscais e
provocar ainda mais necessidade de o país se endividar para pagar a dívida.
Tanto a política da troika na Grécia, Irlanda e Portugal, como a política da
Comissão Europeia e dos países do Centro, como a Alemanha e a França, vai
provocar mais recessão. A própria Alemanha vai ter problemas, porque precisa de
ter quem compre os seus produtos.
Qual seria a solução? Uma reestruturação da dívida?
Em Portugal a reestruturação está muito na moda, mas
não gosto dessa palavra. Na história da dívida, a reestruturação corresponde a
uma operação totalmente controlada pelos credores. Quando o devedor quer tomar
a iniciativa, tem de suspender os pagamentos da dívida, para obrigar os
credores a sentarem-se à mesa e discutir condições. Uma reestruturação é o que
a troika vai fazer na Grécia, impondo um corte de 50% na dívida dos bancos
privados, em troca de mais austeridade no país. Contudo, sem redução da dívida
à troika, que se tornou o maior credor da Grécia e, ainda por cima,
privilegiado, este tipo de reestruturação só alivia de maneira conjuntural o
pagamento da dívida. Não é uma solução de verdade.
Que solução seria essa?
Que solução seria essa?
Sei que esta ideia está fora do debate público, mas,
para mim, se um país quiser sair desta crise, tem de romper com a troika. Tem
de dizer: senhores, as condições que nos impõem são injustas e não nos servem a
nível económico.
Mas se Portugal ou outro país disser isso, não terá de sair da zona euro?
Não acho que seja automático, mas é claro que é complicado. A Alemanha beneficia com o euro, pelas suas exportações e inclusive pelos empréstimos a Portugal. Quando vai financiar-se ao mercado, a Alemanha paga 1%, mas empresta a Portugal a 5%. Não é generosidade, é um bom negócio para a Alemanha. O que Portugal precisa é de uma política soberana em que o Estado declarasse não querer sair da zona euro, mas dissesse que as condições impostas pela troika são inaceitáveis para os cidadãos e para o interesse do país. Caso contrário, a troika só fará mais exigências, que não permitirão ao país sair da situação em que se encontra. Se Portugal disser não à troika, esta seria obrigada a sentar-se à mesa e renegociar a dívida e as condições que impõe. E não me parece que a troika queira a saída de um país do euro.
Mas se Portugal ou outro país disser isso, não terá de sair da zona euro?
Não acho que seja automático, mas é claro que é complicado. A Alemanha beneficia com o euro, pelas suas exportações e inclusive pelos empréstimos a Portugal. Quando vai financiar-se ao mercado, a Alemanha paga 1%, mas empresta a Portugal a 5%. Não é generosidade, é um bom negócio para a Alemanha. O que Portugal precisa é de uma política soberana em que o Estado declarasse não querer sair da zona euro, mas dissesse que as condições impostas pela troika são inaceitáveis para os cidadãos e para o interesse do país. Caso contrário, a troika só fará mais exigências, que não permitirão ao país sair da situação em que se encontra. Se Portugal disser não à troika, esta seria obrigada a sentar-se à mesa e renegociar a dívida e as condições que impõe. E não me parece que a troika queira a saída de um país do euro.
Como se insere neste processo a auditoria à dívida
pública?
A auditoria é um processo promovido sobretudo por cidadãos para romper o tabu da dívida soberana, que nunca se discute nem se analisa. Até pode ser má, mas há que pagá-la, porque uma dívida paga-se sempre, quando, na realidade, tanto ao nível de um particular, de uma empresa ou de um Estado, uma dívida ilegítima, ilegal ou imoral é uma dívida nula. E há toda uma vasta história de anulação e suspensão dessa dívida.
A auditoria é um processo promovido sobretudo por cidadãos para romper o tabu da dívida soberana, que nunca se discute nem se analisa. Até pode ser má, mas há que pagá-la, porque uma dívida paga-se sempre, quando, na realidade, tanto ao nível de um particular, de uma empresa ou de um Estado, uma dívida ilegítima, ilegal ou imoral é uma dívida nula. E há toda uma vasta história de anulação e suspensão dessa dívida.
O que é uma dívida ilegítima?
A ilegitimidade é um conceito cuja definição não se
encontra no dicionário. É a forma como os cidadãos interpretam, de forma
rigorosa, o respeito aos princípios da nação, da construção do país e do
direito interno e internacional. Uma dívida ilegítima é, por exemplo, uma
dívida contraída porque o Estado favoreceu uma pequena minoria, reduzindo
impostos sobre as grandes empresas multinacionais ou as famílias mais ricas,
que assim diminuíram a sua contribuição para as receitas fiscais, obrigando o
Estado a endividar-se. Esta contra-reforma fiscal aconteceu em toda a Europa e
também nos EUA, com o anterior presidente, George W. Bush. Os resgates aos
bancos são outro exemplo. O custo de ajudar os banqueiros, que foram totalmente
aventureiros, desviando os depósitos dos seus clientes para investir no
subprime, implicou um aumento da dívida soberana, que é totalmente ilegítimo.
Não podiam ter sido resgatados dessa forma, os grandes accionistas não deviam
ter sido indemnizados.·
A dívida à troika também é ilegítima?
Sim. Foi uma dívida contraída para impor um desrespeito
aos direitos económicos e sociais da população. Há uma chantagem da troika, que
dá crédito para pagar aos credores, que são eles próprios e os bancos dos
países do Centro europeu, e, em contrapartida, exige austeridade. Não há
dúvida: é uma dívida ilegítima.
Organizou uma auditoria à dívida do Equador... O que
Portugal poderia retirar desse exemplo?
É uma situação diferente. No Equador, o novo
presidente tinha sido eleito com o mandato de fazer uma auditoria da dívida
pública, de modo a definir que parte era ilegítima e não seria paga.
Vê possibilidade de isso acontecer na Europa?
Com uma mudança de Governo, sim. Não pode ser um
Governo que defende os acordos com a troika a fazer uma auditoria à dívida. O
descontentamento das populações pode abrir caminho a isso, mas não sei quando é
que uma mudança desse tipo pode ocorrer na Europa. Os latino-americanos viveram
15 a 20 anos de neoliberalismo e de aceitação do pagamento da dívida soberana.
Espero que não demoremos 20 anos na Europa.
Fonte: Público
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