«GABRIEL E O 'RAP' PENSADOR
Affonso Romano de Sant'Anna
Publicada na coluna "Prosa & Verso" do jornal O Globo, em 24/11/2001
Estou ouvindo o novo disco de Gabriel o Pensador -"Seja você mesmo, mas não seja sempre o mesmo" - e sigo lendo seu primeiro livro "Diário Noturno" (Ed. Objetiva). O livro com fotos, páginas de diário, reprodução de provas escolares, poemas e crônicas, insere-se num gênero novo que vem sendo praticado nas últimas décadas a que chamaria de agenda biolírica. Adolescentes praticam isto usando pilôs coloridos, exercitando, sem o saber, a "estética do fragmento": o mundo refletido em cacos de espelho narcísico. Numa sociedade pragmática que agenda tudo, crianças e adolescentes agendam fantasias e libidos cromaticamente. No caso de Gabriel, ele vai muito além. Embora o livro seja de quando o "autor era um moleque meio maluco que nem imaginava que um dia um maluco meio moleque iria meter a mão nas suas intimidades e mostrar prá todo mundo", Gabriel está produzindo uma agenda crítica de seu tempo.
O livro é a continuação do disco: um rap biográfico. Um informa sobre o outro. A passagem de um texto da série musical para a série literária é arriscadamente complexa. Aliás, há pouco, surgiu um livro centrado nisto - "Ao encontro da palavra cantada" (Ed. 7 Letras), onde Cláudia Neiva de Mattos e colaboradoras reuniram especialistas, que vão deste este cronista a Augusto de Campos, Miguel Wisnik, José Ramos Tinhorão e dezenas de outros, para estudarem a relação entre a palavra e o canto, tanto na música popular quanto na clássica. Lá eu dizia essa platitude: em termos de música popular, há quatro tipos de expressão: a música que canta, a música que fala, a música que corporifica, a música que visualiza.
Pois Gabriel, que quando quando canta é Gabriel o Pensador e quando escreve é Gabriel o Cantador, é um precioso exemplo para se estudar isto. O rap - recitativo rítmico musical originário dos subúrbios negros americanos, encontra nele uma instigante realização. Podemos ouvi-lo, pelo menos, de duas maneiras. O ouvinte espontâneo e ingênuo associa-se ao seu agressivo protesto político e social satirizando a corrupção, as drogas, a alienação de ricos e políticos. Já o ouvinte culto pode ouvi-lo na pauta de nossa produção cultural e fazer algumas correlações. Por exemplo: a relação entre o seu rap e os repentistas nordestinos. Posso até sugerir um termo de confluência - "rapentista". Esse tipo de texto, que está nos clássicos repentistas como o Patativa do Assaré, e nas emboladas, no samba e desafios, exercitando a mordacidade através das rimas imprevistas e dos jogos de palavras. O processo é aquele da "palavra-puxa-palavra", onde o texto faz curvas, dobra-se sobre si mesmo, desfolhando sentidos novos. Já no título do CD isto está subentendido, pois à frase "seja você mesmo" segue-se "mas não seja sempre o mesmo", aparentemente contradizendo, mas duplicando a mensagem.
O ouvinte culto pode ainda fazer uma pertinente associação lembrando o CPC (Centro Popular de Cultura), fomentado pela UNE no princípio dos anos 60. Possivelmente Gabriel nunca ouviu aquele disquinho onde havia não só o histórico "Subdesenvolvido", como outras canções de protesto, na voz até de cantores conhecidos, como Nora Ney. Acreditávamos que a música podia ajudar a fazer a revolução. O diabo é que aquelas músicas não eram tocadas nas rádios, ao contrário dessas de Gabriel, que atravessam a zona sul e os subúrbios, agitam com requebros e uivos os auditórios das televisões. A cultura de massa modificou-se tanto, que o próprio protesto virou artigo de consumo.
Mas é por essa brecha que Gabriel penetra produzindo um texto musical que critica a alienação de uma geração que era (ou é) incapaz de formular sequer um discurso, a geração que dizia que não estava-nem-aí, geração monossilábica, a geração do "Ãh": "Eu não sei quem inventou essa mania e nem sei o que seria esse "ãh" . Eu só sei que eu acordei no outro dia e só ouvia todo mundo dizer ãh" .Tranquilamente fui ali na padaria e falei bom dia, responderam "ãh" . Comprei um pão e fui ver televisão, só que na programação só tinha "ãh"… E daí prá frente vai narrando até encontros com gatinhas cujo papo é só "ãh", "ãh" ironizando a falta geral de léxico e nexo do discurso social.
Então, eu diria, que Gabriel procura a fala plena, o discurso cheio, contra o minimalismo alienado e alienante, porque não adianta só reclamar bramando: "ninguém tá escutando o que eu quero dizer! Ninguém tá me dizendo o que quero escutar! Ninguém tá explicando o que quero entender! Ninguém tá entendendo o que quero explicar". É preciso algo mais: "não adianta só pensar. Você tem que dizer! Diz! Porque as palavras têm poder. Mas não adianta só falar. Você também tem que fazer".
Diferente da música que se embala nos lugares comuns da sensibilidade e dos careteiros góticos e darques com uma rebeldia vazia, Gabriel vitupera contra a "masturbação mental" acentuando:"Deus me livre dessa rebeldia que fala e não diz nada".
Gabriel pensa, logo existe.
Gabriel canta. E resiste.
http://www.gabrielopensador.com.br/
«Primeiramente vamos falar como surgiu o apelido: Pensador.
Gabriel fala o que pensa. E como ele fala! As palavras saem aos borbotões, justificando o apelido de Pensador: "Esse nome surgiu logo nas minhas primeiras letras. Não me lembro racionalmente como foi, mas veio bem porque combina. Ultimamente não tenho gostado dessa característica de pensar demais porque ta me dando insônia. Eu fico até puto! Ás vezes eu deixo de me divertir pra ficar pensando, analisando, tirando conclusões.".»
O Cachimbo da Paz
Gabriel Pensador
A cri... (cough)
A cri... (cough)
A criminalidade toma conta da cidade
A sociedade põe a culpa nas autoridades
O cacique oficial viajou pro Pantanal
Porque aqui a violência tá demais
E lá encontrou um velho índio que usava um fio dental e fumava o Cachimbo da Paz
O presidente deu um tapa no cachimbo e na hora de voltar pra capital ficou com preguiça
Trocou seu palitó pelo fio dental e nomeou o velho índio pra Ministro da Justiça
E o novo ministro, chegando na cidade, achou aquela tribo violenta demais
Viu que todo cara-pálida vivia atrás das grades e chamou a TV e os jornais
E disse: "Índio chegou, trazendo novidade índio trouxe Cachimbo da Paz"
Maresia, sente a maresia, maresia...
Apaga a fumaça do revólver, da pistola
Manda a fumaça do cachimbo pra cachola
Acende, puxa, prende, passa
Índio quer cachimbo, índio quer fazer fumaça
Todo mundo experimenta o cachimbo da floresta
Dizem que é do bom, dizem que não presta
Querem proibir, querem liberar
E a polêmica chegou até o congresso,
Tudo isso deve ser pra evitar a concorrência
Porque não é Hollywood mas é o sucesso
O Cachimbo da Paz deixou o povo mais tranquilo
Mas o fumo acabou porque só tinha oitenta quilos
E o povo aplaudiu quando o índio partiu pra selva e prometeu voltar com uma tonelada
Só que quando ele voltou "Sujou"!
A Polícia Federal preparou uma cilada
_"O Cachimbo da Paz foi proibido.
Entra na caçamba vagabundo! Vamô pra DP!
Ê, ê, ê! Índio tá fudido porque lá o pau vai comer!"
Maresia, sente a maresia, maresia...
Apaga a fumaça do revólver, da pistola
Manda a fumaça do cachimbo pra cachola
Acende, puxa, prende, passa
Índio quer cachimbo, índio quer fazer fumaça
Na delegacia só tinha viciado e delinquente
Cada um com um vício, um caso diferente
Um cachaceiro esfaqueou o dono do bar porque ele não vendia pinga fiado
E um senhor bebeu uísque demais, acordou com um travesti e assassinou o coitado
Um viciado no jogo apostou a mulher, perdeu a aposta e ela foi sequestrada
Era tanta ocorrência, tanta violencia, que o índio não tava entendendo
Ele viu que o delegado fumava um charuto fedorento e acendeu um"Da Paz" pra relaxar
Mas quando foi dar um tapinha, levou um tapão violento e um chute naquele lugar
Foi mandado pro presídio e no caminho assistiu um acidente causado por excesso de cerveja:
Uma jovem que bebeu demais atropelou um padre e os noivos na porta da igreja
E pro índio nada mais faz sentido
Com tantas drogas porque só o seu cachimbo é proibido?
Maresia, sente a maresia, maresia...uuulll
Apaga a fumaça do revólver, da pistola
Manda a fumaça do cachimbo pra cachola
Acende, puxa, prende, passa
Índio quer cachimbo, índio quer fazer fumaça
Na penitenciaria o "índio fora da lei" conheceu os criminosos deverdade
Entrando, saindo e voltando cada vez mais perigosos pra sociedade
Aí, cumpadí, tá rolando um sorteio na prisão
Pra reduzir a superlotação todo mês alguns presos tem que ser executados
E o índio dessa vez foi um dos sorteados e tentou acalmar os outros presos:
"Peraí, vâmo fuma um Cachimbinho da Paz"...
Eles começaram a rir e espancaram o velho índio até não poder mais
E antes de morrer ele pensou: "essa tribo é atrasada demais. Eles querem acabar com a violência, Mas a paz é
contra lei e a lei é contra paz"
E o Cachimbo do Índio continua proibido
Mas se você quer comprar é mais fácil que pão
Hoje em dia ele é vendido pelos mesmos bandidos que mataram o velho índio na prisão.
Maresia
sente a maresia
Maresia.. uuulll
Apaga a fumaça do revólver, da pistola
Manda a fumaça do cachimbo pra cachola
Acende, puxa, prende, passa
Índio quer cachimbo, índio quer fazer fumaça
Maresia
sente a maresia
Maresia.. uuulll
Apaga a fumaça do revólver, da pistola
Manda a fumaça do cachimbo pra cachola
Acende, puxa, prende, passa
Índio quer cachimbo, índio quer fazer fumaça
Sem comentários:
Enviar um comentário